31.1.07

vertigem.


Parte I
(ensaio - antes da morte)

As mãos e os olhos na água,
as mãos que mergulham nos olhos
tocam também o chão e o vento.
Que são as palavras quando me desabrigo
E a luz dos sons que as palavras gritam,
Quando me é escrita uma carta que me deixam
No ventre, fundida na cola das palavras.

E parto, partem comigo as cadeiras e as mesas
O suporte da cabeça e dos dedos
Parte contígua a moldura em cólera da dança das bocas
Da luta das cabeças, do peso do ferro
Do peso dos cabelos

Elevados os corpos, sem jeito tocamos os dedos
As mãos que coladas dançaram
Encostaram os rostos nas mãos, sem jeito
que um deus desajeitado uniu num quarto.

Que fosse esta a última visão
Antes que a boca cerrasse o medo
De abandonar a pele deste fruto conhecido
E de nos lançarmos à torrente da fome dos corações
Onde o sal come o ferro e os peixes o coração.
Parte II
(carta depois de nascer)
Vai, espeta o corpo num astro.
Astro de mão que lançado no céu corre um corpo de luz pela mão e as asas ficam leves.
Luz no teu corpo a fundir no céu a serenidade de um voo alado, de duas mãos livres.

Renasce no alto, despe a pele, nasce do alto, atira a morte na terra.
Bonitas asas. Fazem esquecer o vento da audácia. Fazem esquecer o que é pequeno, o que é humano.

Rebenta a nudez e chora. Grita esse dom de fazer a música apaixonar-se por ti, e do sofrimento da escuridão te devolver à cama.

30.1.07

transfusão.

Imagem por Cláudio.


O corpo é ávido, como tu. Ávido porque todos os dias saímos porta fora, e porque todos os dias há comboios que partem sabe-se lá para onde. Há corpos que descolam para lá. Partem com a sensação de perda e o ritmo parte também. E quando acordas numa manhã em que a temperatura estica os braços e as pernas para pólos distantes, ainda sentes mais essa partida.

E partes. Em partes não iguais.

Porque cá os tripulantes esforçam as línguas e o ordenado é mal pago. Mas não existe a trepidação dos carris, e todos ficam por cá. Porque não existe trepidação. Porque não se paga bilhete.

E o que estranhamente se repugna, uns instantes depois é sangue e pode ser transfundido. É vida. Estranhamente é vida. Porque existe pelo meio a exploração do desconhecido, porque o desconhecido muitas vezes nauseia, porque é estranho e torce o estômago.

Quando passo no jardim do Príncipe Real, pelo meio, vejo que está frio e que algures nas ruas está um sujeito que busca e está torcido, porque busca. E escuto um casal de namorados que se beijam com as línguas, e sorriem, e lutam esgrima com as línguas, e falam, mas não se percebe o que dizem. Esses não buscam. Têm o estômago limpinho e direitinho. Mas aquele riso pode vir do estômago. Estará torcido?

Desço e caminho, o frio vem da calçada molhada e aparentemente o que podia ter sido uma viagem de comboio, em boa verdade, não foi. Mas estranho tudo, e é agradável.

26.1.07

profilaxia.




Vejo a Lauryn Hill chorar em acústico ao cantar “piece of mine”. Música bonita. Faz lembrar uma criança, mas só a face, porque as lágrimas são provectas.

Uma mulher também chora quando rapa o cabelo?

Quando se rapa o cabelo, ou é por doença, ou porque se vai ficar doente. A Virgínia sabia que ia ficar doente, ainda mais doente, mas não rapou o cabelo, não teve tempo. Mas teve tempo de ir ao rio. Rapou a morte porque escolheu a vida.

Há quem pinte o cabelo e não seja tão marginal. Há quem pinte telas e o cabelo.
Eu só pinto letras, mas não tem a ver com profilaxia.

Cortar o que quer que seja é algo renovador como as queimas. Diz a história que um pai queimou o filho numa grande fogueira. Quis libertar-se do pecado. As lareiras também queimam memórias, e são eficazes na combustão cefálica.
Depois tudo fica cinza e a cinza pode ser partícula no ar, portanto entra no nariz e é pessoa.

Chorar, rapar o cabelo, queimar o desperdício que é, muitas vezes, não saber escolher a vida.

chapéu preto.



Alguém dizia que “ as coisas são assim mesmo, por enquanto somos fortes, mas podemos vir a ser magríssimos, com chapéu preto, e loucos. E uma enfermeira virá colocar-nos o lençol bem por cima do corpo.” Mas por enquanto somos fortes e temos 24 anos.

Mas eu sei, eu sei, por isso não tenho paciência para os que querem ser loucos, para isso basto eu, que sou louco.

São todos. De todos quase ninguém é louco. Todos juntos nunca o foram. É um cocó mas aprendemos a escrever-lhes sátiras. Música para o coração. Bombom para boca. Sexo sem ver a infelicidade da nudez.

Mas eu tenho paciência, tenho, tenho. Mas morre prematura. Depois começam a nascer as flores, aparecem borboletas e faz-se luz.

Porque há beleza nos candeeiros de rua, e um vestido de noite é sempre um vestido de noite. As pessoas são indumentárias de ocasião. Tudo é bonito num vestido de noite – e ser altruísta é tão mais mesquinho que a modéstia. Mas é bonito. E nós também achamos bonito. Mas não nos deitamos na cama a achar bonito. Fazemo-lo cépticos e descrentes porque sabemos que a essência do Homem não depende de dons intelectuais ou da riqueza, mas da tendência. E esta, não pode ser perturbada com estrume.

Tendência como o ruído dos corpos. Como um cão a fugir de outro para não ser esfacelado. Como o conforto interno de não ver as mesmas cores nos olhos e habitar um quarto com esfinges de animais de vidro que só os olhos grandes vêem.

Sim, porque sou um ser próprio de um mundo propriamente meu, singular. Tenho uma experiência propriamente minha - singular. Basta por isso fechar as portas à pluralidade e abrir ao inverso compatível.

É como beberes água, só que umas vezes podemos apanhá-la gelada, outras fervente. Evito com isto as gasosas de marca branca. Acontece encher o copo, levar uma vez à boca e deitar o resto fora. É necessário algo licoroso, forte, e pôr colónia nos poros.

- Kölnisch Wasser?

- Errado! Hoje é Bouquet Imperial by Roger & Gallet!

Boa noite!

24.1.07

duas mulheres.



Depois de vários dias com calor na orelha esquerda, reparo ao subir a rua, a que sempre subo, que há mais frio naquela rua, não bastam as fezes dos animais de companhia.
Enquanto medito e vou com atenção à merda (que é tarefa simples) sinto uma mão qualquer no cabelo, no sítio cego da nuca, mas não puxa o cabelo. Foi um toque a chamar-me, não era uma mão qualquer, a chamar-me para ficar parado naquele sítio cego da rua, e pediu-me a mão direita.
-Palma da mão para cima! – ordenou ele. E fico nauseado quando vejo que está pequena, especialmente pequena.
Fitou as rugas da palma, aquelas da vida e da morte, e como se as estivesse a cheirar ao mesmo tempo disse:
-Há quanto tempo! Sabes, estão pequenas porque não te visitei antes. – tranquilizou-me, sim tranquilizou, mas não consegui falar porque ainda sentia frio e a pele dele era áspera da ausência.
- Porque demoraste? És quem eu penso? – disse confuso.
- Sabes que estou nas impurezas e nas flores que compraste ontem. Já agora, porque compraste narcisos no meio das outras, não te bastam os outros estames mais pequenos?
- Gosto da flor, é branca, como o ruído do sexo.
- «Que ruído tan triste lo que hacen dos cuerpos cuando se aman!»
Que ruído tão triste, não, não é triste, é húmido. A água tépida não tem humor. Creio portanto que não lhe devas chamar triste.
- Shhhh. As palavras são demais, e tu tens de me escrever mais regularmente. As tintas estão a secar e eu preciso de ti para engravidar de um sonho. Sente este ponto. – disse enquanto calcava a palma da mão.
Juntou-me as mãos tépidas e uniu-as quentes, e de repente não havia absolutamente ruído algum, nem de pombos, nem de cães.
- Tenho de ir. – sorriu e beijou-me a face esquerda.
Partiu como Judas e impacientemente remordo porque não percebi porque me viu a mão, nem porque me aquece a orelha esquerda há dias.
Quando abandono aquele espaço sinto o corpo avolumado, penso no ruído dos corpos e vou para casa. Coloco as flores na água fresca, as flores ainda estão frescas, talvez do frio, e deito-me gelado no sofá a escrever este texto enquanto lá fora há pessoas a gritarem e duas mulheres que choram. Morreu-lhes o cão.
E eu, sozinho, sem cão para morrer, acendo um cigarro e limpo um disco de Rachmaninoff que o ponho a girar no Telefunken.
As notas do piano engrossam e o fumo do cigarro dissolve os gritos das mulheres. Descanso as mãos nas pernas e o corpo da cabeça.
(...)
Fumo, fumo e fumo porque a orelha ainda aquece, há cães que ladram e eu sei que ele dorme em todas as divisões da casa.

19.1.07

verde génio.


Cheiro a colónia. É sangue de flores e erva, mas tem álcool e fixador.
Isto porque o meu corpo, ao contrário de Kafka, não se “escaravelhizou” (seja isso o que for). E não o fez porque hoje sou um molusco branco e dou por mim a pensar na fotossíntese das plantas e na razão física do verde.
Porque o verde tem um importante significado transfusional, assim como o azul lá de cima (já conheci um rapaz verde e eu já fui azul).
É como as crianças pintam a vida, já repararam, de verde e azul (o rosa e o encarnado só surgem quando lhes dizem que têm namorado(a)).
Grave seria usarem o verde e o azul noutra idade, porque descobrir a masturbação é guardar em caixas o deslumbramento dos guaches.
E há que ser crescido, crescido, crescido, não há tempo para tintas, e magenta é cor de menina. As flores já cheiram a finados porque a água apodreceu. As flores morrem depressa porque são frágeis, por isso não lhes toques, não lhes mires o estame que tem veneno.
É por isso que todos os sábados as senhoras (sim são só senhoras) oferecem a magia do verde ao mármore, porque os mortos são antídotos por excelência, e o veneno não lhes faz mal.
E se não tivéssemos deixado estragar a água das flores, e ao invés de mirar lhes tivéssemos arrancado os estames com a boca?

Será que crescemos, crescemos, crescemos?

Hoje em dia é fácil ser-se brilhante e bem comportado. As pessoas habitam as mesmas casas e todas obedecem ao conhecimento e à cultura das cores. O problema é que lhes falta o génio.

Falta a magia do verde e do azul.






17.1.07

processo criação de um corpo.



Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

Experimentação. Estagiei na barriga velha de uma mulher velha do campo. Sentia-se o cheiro da lareira, dias depois da queima.
Muitas vindimas, muitos Outonos. Refeições de mosto. E o cheiro do mosto cheira a queima e álcool, cheira a lareira.

Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

Senti corpos trespassarem-me. Houve vidas em trespasse. Era individual como dizem os senhores que pensam no indivíduo.

Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

Senti depois o corpo tomar um corpo mais maciço e as palavras saiam bravas do corpo da boca. Carregava no lápis e nos sons da noite. Sons imberbes porque a noite morria antes do tempo. E eu vivia antes do tempo.

Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

E o tempo pede contas e apresenta factura. E eu vivi antes do tempo fazer as contas. Não teve tempo. E eu também não.

Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

Hoje não sei o que como, mas conheço o cheiro do mosto. Conheço alguns homens e algumas mulheres. Sou individual e sou freguês de cafés. O tempo já fez contas. Deitou-se comigo, e na manhã seguinte estava isento de impostos.


Palavras de lápis, textos a lápis, folhas de versos, versos na carne.

16.1.07

restaurante russo.



Ontem subi a calçada e vi dois homens que falavam. Homens de meia idade mas com pele vergada. Homens com velhice na cara (a minha avó também tem velhice na cara).
Falam possivelmente dos empregos enquanto correm a calçada num passo velhaco. Descem com a vontade de esgravatarem as chaves na porta de casa. Casa para bolçarem dentro o silêncio, não pelo facto da casa já estar morta, mas porque a idade já não permite chorar.
Fiquei com vontade de lhes dizer que fariam alguém feliz se chorassem. As lágrimas lavam manchas de mofo, de roupa e de raiva.
Dir-lhes-ia ao cruzar-me, que tenho na algibeira um volume de desencontros e um maço de mulheres perdidas. No casaco tenho homens que nunca se perderam. Nunca se encontraram.
Gostava de ter carpido com eles, ali na esquina do restaurante russo, onde provavelmente alguém dançava kalinka.

E sim, fazia frio e as línguas bafejavam.

15.1.07

o preparo.



Nasci no minuto errado, no hospital errado. As mãos da parteira eram provavelmente pequenas e os dedos teriam unhas ruídas. Quase imagino a benção das garras (quase imagino a minha de as sentir).

Tarde, a avó velha lanchava comigo na solidão do calor seco. Aquele calor que distorcia em ondas a película do exterior. E contava-me que havia visto homens mortos, e ainda, a estória de um outro que fora atirado a um poço (onde nasci existem imensos poços – mirava-lhes o fundo com dor cardíaca, e não era de ver as aves mortas que lá caiam). Contou-me também, numa tarde de lanche e dartacão, que uma rapariga da aldeia era louca, e um pouco porca, porque assistiu à morte dos pais. Estória comum do marido que mata a mulher e se suicida pela força da Natureza. Sim acredito que seja a Natureza a matar estes homens. A Natureza é capaz de tudo, oferece ódio, morte e o amor, assim como os tira em dias de chuva e de vento. Perturbadora a imagem da menina, hoje é uma puta sem asseio, provavelmente louca, provavelmente sã, provavelmente suja do pecado – ninguém com 3 ou 4 anos deve assistir à morte em série dos pais.

A avó preparava-me ao ceder-me a dor numa sandes de fiambre e num copo de nesquik. Tive um preparo emocionante antes da sua partida. Quis-me sempre ao lado até ao allegro da despedida. Partiu sem me contar a estória da mulher que roubava paixão aos homens.

Partiu. Partida. Saudade.

12.1.07

corta-unhas.



hoje cortei as unhas das mãos [as dos pés demoram mais a crescer]

e se com o corta-unhas pudesse...

cortar este episódio
mais a comida que caiu mal,
a piada que deu vontade de chorar
a pena do outro
a pena de mim
as penas das aves que estão sempre sujas
beltrano, e sicrano.
o logo, o antes e o agora?

e se ao invés de cortar pudesse antes, envaginar?

a vontade de tossir para cima do mundo
a vontade de gargalhar na cara d’outro
apontar o dedo e dizer: “é aquele” ou “é ali”
gritar quando o que ouço não faz sentido
dizer a alguém “o senhor é um caracacá”
dizer a alguém “a senhora é uma pata”
adormecer sem dores no peito e no fígado.

e, se eu pudesse… crer?

11.1.07

tomamos café?




o poder do encontro
desencaixa o corpo de um eixo
porque tem música a escorrer das bocas
e línguas de fogo a incendiar as mãos.

é uma orquestra de pulso
em que o sangue cresce em contralto
e dá laçadas ao sopro do pescoço.

e dá uma vontade de envolver a pele num lume acima das cabeças
e sentirmo-nos dentro e fora do olhar
como se a fusão fosse o núcleo químico da força dos homens.

10.1.07

pechisbeque.



o meu corpo tem ondas e nervos de plástico rijo
operacionaliza-se da porta fora
baila, range e salta para um palco
sapateia olhares e degraus.

[ a expressão de um corpo é um chapéu-de-chuva!]

o corpo é a volúpia dos olhos
é a carne dos lábios.
os olhos são emissores de maquilhagem
o corpo é a maquilhagem de trazer por casa.

reparem, faz-se este jeito, aquela pálpebra
este posicionamento da mão,
aquele ângulo da perna,
este sorriso tangente à confiança.

grito porque não vejo quem saiba dançar
espremo-me porque ninguém está nú.

porque é sempre preciso retocar a transparência
é preciso saber dançar tango e passo doble.

ser de pechisbeque enamora as calçadas,
porque somos genuinamente cinematográficos

mas onde está a vossa uterina liga de metais?

tenho a minha guardada num saquinho de veludo!
aguardo nova agenda de espectáculos.

9.1.07

só mar.



hoje vou ao mar
buscar encomendas de paz e de pescado.
vou respirar o sal da areia
e das correntes o viço branco.

vou pregar os pés no gelo
enquanto fito um rancho de pescadores
arrastarem-me a memória
em amplas redes de malha grossa.

o estouro das ondas vai fazer-me berço
vou, na simplicidade da maresia,
sorrir na mesma amplitude das vagas
e esvaziar de dentro o prejuízo que reside.

exclamo aos pescadores

um cântico ao mar – vida,
a ode a mim libertador e a ti, ave livre da terra.
uma viagem ao centro da divisão dos corpos
na sublimação das nossas asas.


8.1.07

alma de corda.



puxei do vento linhas de tecido
arranquei da terra um agulhão de lata
dobrei a forma do novelo
e reforcei a consistência do metal

ouve-se deste quarto o som das aves
mesmo de janela cerrada.
na rádio o som do abismo.
teço e dou cordas aos timbres e aos hertz

coso laçadas e nós de ritmo
costuro também imagens do exterior
que dão fio e cor aos entrelaçados
e moldam a forma de uma alma

reparo que a criação é veloz
pariu-me nas mãos a força de uma forma
que vem de fora e é filho deste quarto

tem cores que desconheço, é dócil, terna,
e para aconchego,
tem na malha o ferro
que o agulhão consagrou no parto.

5.1.07

locus nevoeiro.



Acordei com a sensação estranha de não pertencer aqui.

O quarto apertou-me a fracção interna do humor e não saem palavras.

Cansado de mim arrasto os deveres num início de manhã, só para que ela seja possível. Só para que eu seja possível.

Penso no valor da falsificação dos minutos, e no preço destes rostos, de todos os rostos.

Hoje não existem aves de enfeite, nem existe céu tão pouco. Engendrei este nevoeiro durante o sono, tal não foi a opacidade do meu corpo.

Ver a prisão espelhada no volume dos outros foi de tal forma asfixiante que cerrei os olhos durante praticamente toda a viagem até ao trabalho.

Sinto que já não devoram a mesma energia de mim, não a posso dar, também não sei a que sobra.

Estou inacessível, é isso. Não me acedo e não adiro à franqueza dos afectos.

Temo que ao disparar este rigor possa gelar o ar e cristalizar os lábios que me deste. Não quero e não subsiste essa vontade.

Quero que a tonalidade das peles fique limpa do opaco que os outros deixaram ficar e que as selecções deixaram ficar, e ainda da sombra ampla que o caos estende numa corda vasta.

Quero sentir a matriz do nosso retrato numa tarde branda, com aves de enfeite e timbres cálidos, e sorrir em toda a extensão das núvens altas, onde estamos nós, a troçar das vicissitudes dos amantes.

Sou eu que tomo esta dança.

Acordo num passo, saio daqui noutro. Não me cansa. Cansa-me antes permanecer o caminho todo numa estação fria. Não tenho casacos que cheguem.

Sou um bicho de sensações tout court, bebo cocktails expansivos e como o lirismo sem guarnição.


Bom dia.


2.1.07

dois mil e sete.


Quero perder-me no deserto e molhar os cabelos na areia enquanto só, revejo as palavras que ficaram soltas.

Quero a viagem para encontrar a barbárie de não ter sido o que devia, em cada crepitação do vento.

Dormir sobre imagens coladas que amarroto ao fazer cama com o corpo.

Pulsar na pele as recordações na terra. Mirar-lhes os rebentos e chamar animais para dormirem comigo.

Disseminar-me com eles por acidente e em toda a parte. Sentir na cara a luz fértil do sono, mesmo de olhos fechados.

Sonhar em desenhar os traços que preciso. Escolher cores. A textura de quem desejo.

Amanhã

Quero ser franco nos movimentos.

Sereno nas palavras que dedico.

Efusivo em cada pedaço dividido.