15.1.07

o preparo.



Nasci no minuto errado, no hospital errado. As mãos da parteira eram provavelmente pequenas e os dedos teriam unhas ruídas. Quase imagino a benção das garras (quase imagino a minha de as sentir).

Tarde, a avó velha lanchava comigo na solidão do calor seco. Aquele calor que distorcia em ondas a película do exterior. E contava-me que havia visto homens mortos, e ainda, a estória de um outro que fora atirado a um poço (onde nasci existem imensos poços – mirava-lhes o fundo com dor cardíaca, e não era de ver as aves mortas que lá caiam). Contou-me também, numa tarde de lanche e dartacão, que uma rapariga da aldeia era louca, e um pouco porca, porque assistiu à morte dos pais. Estória comum do marido que mata a mulher e se suicida pela força da Natureza. Sim acredito que seja a Natureza a matar estes homens. A Natureza é capaz de tudo, oferece ódio, morte e o amor, assim como os tira em dias de chuva e de vento. Perturbadora a imagem da menina, hoje é uma puta sem asseio, provavelmente louca, provavelmente sã, provavelmente suja do pecado – ninguém com 3 ou 4 anos deve assistir à morte em série dos pais.

A avó preparava-me ao ceder-me a dor numa sandes de fiambre e num copo de nesquik. Tive um preparo emocionante antes da sua partida. Quis-me sempre ao lado até ao allegro da despedida. Partiu sem me contar a estória da mulher que roubava paixão aos homens.

Partiu. Partida. Saudade.

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